domingo, 8 de outubro de 2017

Distribuição normal da ocupação de mesas



É precisamente à custa da disciplina de Métodos Quantitativos II que, neste exato momento, olha em volta, perscrutante, sem canudo algum de que se possa valer. Por algum motivo, parece-lhe que se sentiria mais confortável, consolando-se num qualquer “ah mas sim, eu sei bem do que me estou a pensar, foram anos a queimar as pestanas”. Não se dá o caso, essa é que é essa. E apesar disso, faz sentido.

Quer dizer, devemos conceder que há gente que pensa nas coisas quando deita mãos à obra e empreende nestes mastodontes comerciais. Ao fim e ao cabo, é natural que não se tenham posto a atirar mesas para os espaços desocupados, a ver quantas lá caberiam. São até moços para ter um algoritmo que indique a proporção correta. Se não estética, pelo menos a adequada para escoar o previsível movimento de junk foodies.

Mesmo para um tipo razoavelmente iletrado, se torna evidente que existe uma certa lógica no movimento: aviam-se hamburguesas carregadas de múltiplos motivos para enfartes do miocárdio, enchem-se copos de papel de pedras de gelo e alguma água açucarada, atafulha-se o tabuleiro de guardanapos e tenha uma morte feliz, próximo; enquanto isso, alguém terá tratado de fazer valer o seu investimento no super-menu extra big large - com as novas batatas hiperoleosas, por apenas mais 0,75€ - e terá despachado essa quantidade apreciável de lixo bem saboroso, besuntado em salsa para patatas e ketchup. Levanta-se então - Ave  Caesar, morituri te salutant - e eis que abre o espaço necessário e suficiente para que se abanque o próximo receptáculo de gorduras bastante saturadas. O queijo derretido já a ficar sem graça, devido ao choque térmico.

Mas, estranhamente, não é isso que se passa. O que podemos ver é uma horda de esfomeados, tabuleiros na mão, a babarem, sabe-se lá se de fome, se de raiva, como os cães. É até um pouco assustador, vê-los de cabeça à roda, qual periscópio varrendo o horizonte do Báltico. Malditos Nazis.

Passados alguns minutos, a situação piora, à conta da pilha de nervos de se andar à procura de lugar. Ficam de olhos muito abertos e apressam o passo, dando ares de loucos perigosos, capazes de matar por uma cadeira. Aos poucos vão desistindo, seguram o tabuleiro quase ao nível dos joelhos, tristes e desconsolados. Vagueiam por entre as mesas, onde decorrem animadas conversas, como uma matilha de cães famintos, ainda que carreguem o seu alimento. Ou pior, como uma trupe de mortos-vivos. Credo. 

O inimigo opta pela antiquíssima estratégia da ignorância e do desprezo: faz de conta que nem os vê. Fazer que não se vê é, muito incongruentemente, como usar óculos. Quem é que vai desancar outro alguém que nem sequer o está a ver? Como quem diz: moço, percebo lindamente o teu desespero, sendo que eu próprio já passei por isso. Infelizmente, nem te estou a ver, porque até era rapaz para te arranjar um lugarzinho. De vergonha que tinha. Se te visse. Que não vejo. Olha, cortei outra fruta. É mesmo giro, o raio do jogo.

E assim chegamos a este magnífico cenário: os que detêm a comida, estão de pé à procura de onde se sentem. Os que comida não têm, estão tenazmente alapados às mesas, fingindo-se distraídos. Havemos de convir que há um certo sopro de justiça social. Marx havia de sorrir, notando que os que detêm a matéria prima estão longe de controlar os meios de produção. Também, iam produzir uma bela merda. Literalmente.

...

Se o pintassem daquela cor estranha que tem o bronze, diríamos um homem estátua. Perfeitamente estático, segurando o seu tabuleiro, metido nos seus pensamentos, apenas traído pelo leve roçagar da improvável gabardina, agitada pela deslocação de ar que o movimento das pessoas provoca. Subtil.

Embora a probabilidade da distribuição lógica dos indivíduos pelo espaço pareça, por motivos impenetráveis, comprometida, estranha a ausência de apetite da turba tabuleiristica pelos três mil e seiscentos lugares - assim por alto - na mesa mesmo em frente a si. Menos um, ocupado pela senhora gorda. No entanto, descomplexada. Dada a claramente intencional exibição de banhas e refegos, saltando alegres para cima das calças muito justas e por baixo do top que mal lhe cobre as massivas mamas. As unhas muito longas e multicolores, completam o ar festivo da sombra muito azul e dos lábios muito vermelhos. Tudo muito. Demais.

Escolhe um lugar, dois mil assentos de distância, não vá a matrona sentir que lhe invadem a bolha. Pousa o tabuleiro e ouve-se um apito, qual sirene a anunciar a hora de arrear da linha de produção. O povo olha-o. O som provém da mesa, o alvo guarda as mãos nos bolsos das calças:

- Uôi, oh morcom, num bês ketá ocupado? Sou pequenina, é? Salta majé daí, ai o carago.

Mais próximo, os olhos um tanto abertos de espanto, procura alguma informação que parece relevante:

- Ali, tão longe? A tantas cadeiras de distância?

- Olhameste, olha. Vamos ter chatice? Já num te disse ketátudócupado? - Olha em volta, os braços apoiados na mesa, o imenso rabo semi-levantado da cadeira. - Já aí vêm as pessoas, é irejandando daí prafora.

Um cachopo da mesma estirpe - em termos de carnes - aproxima-se, comendo alguma batata no seu ketchup. A distância para a senhora sentada reduziu-se na medida exata, como que predeterminando o desfecho. Ela berra de novo:

- Ainda aí estás? - Olha o rapaz. Grita: - Rolando, já te disse pra num lEmberjasbatatas!

Só quando sente a textura ligeiramente áspera dos canos serrados na têmpora, percebe que não é por se falar muito alto que se tem mais razão. Oxalá alguém lhe tenha guardado um bom lugar, lá do outro lado.

Os serviços de limpeza vão-se ver aflitos com tanto ketchup derramado.

...

As fugas nunca são muito atribuladas. Nem se fazem em passo de corrida. Dá tempo para ir pensando nas coisas do Mundo.

Ainda agora, por exemplo, o passo é estugado, mas tranquilo, fazendo esvoaçar as abas da gabardina. E pensa: Porque é que animais que não ruminam, haveriam de se abster de comer carne?

Ah, os Grandes Mistérios da Existência...

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Soundtrack to big'ol lady: Save a place...

10 comentários:

  1. Excelente, excelente, excelente! Abraço

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    1. Oh grande José, isso não é um elogio, é uma honra. Muito obrigado. Apareça mais vezes.
      Abraço.

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  2. Dizer (escrever) o quê? Quando o génio se solta, ninguém o consegue segurar. É uma honra partilhar o apelido contigo, caro Paulo !!

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    1. Obrigado, jovem velhote. Mas, a bem dizer, achonque sou eu quem em partilha do apelido contigo. Antes de o mudares, está claro. :)

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  3. Lá está, carago!!!!
    Na Badalhoca, num precisas de te preocupar com o espaço, nem com cadeiras, nem tão pouco com senhoras gordas, porque por incrivel que pareça, só lá vai trolhas e engenheiros, bebedolas e "nerds", analfabetos e informáticos, e senhoras de elegância a modos que "trabalho na Segurança Social e estou estafada"!
    Ah? E tabuleiros nem vê-los! É pegar com as mãos com o molho depravadamente a entrar pela manga adentro (os guardanapos são limitados ao cliente, já agora também queres papel higiénico não?), e se for preciso vem-se cá para fora degustar toda uma fast food genuinamente portuguesa!
    E a Lurdinhas, num precisa de luvas de borracha á cirurgião de Hollywood, para pegar no bucho,nas tripas enfarinhadas, na chouriça e no famoso presunto, ou no sushi á portuga que são os carapaus fritos com aqueles olhos arremelgados a olhar pra ti, estéticamente decorados em toneladas de cebola.
    As mesmas mãos que recebem o guito e te dão o troco e que depois irão pegar carinhosamente no rissol de leitão! Porque tudo o que não te mata só te fortalece! E eu prefiro comer uma isca a saber a 20 euros que uma sande da Pans e Cª a saber a congelados fora de validade!
    E o espadal sabe tão bem bebido sem palhinha!

    A Badalhoca só tem um grande , enorme, hiper, mega defeito: é boavisteira!

    P.S. Vá lá vai caté a barraca abana, porque em Ermesinde, a senhora género Badalhoca lá do sitio, até tinha um rico apelido: a coçópito!!! E que ricos petiscos se comiam lá! Vaginais! Quer dizer, divinais!

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  4. Às vezes, venho aqui depurar-me da realidade.

    Excelente, Silva.

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    1. Obrigado meu caro. Só não sei se te depuras ou contaminas. Desde que saiba bem, é tinto. Olha, boa ideia! Alentejo? :)

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    2. Destas contaminações do Silva não necessitamos vacinas, bem antes pelo contrário...
      Saia um Borba p.f. e cheio de preferência;-)

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    3. Aqui é sempre cheio. Não servimos meios copos :)

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